quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O Natal na minha terra...(II)


Este é o Presépio aqui de casa. Temos mais Presépios, claro, arrumados em caixas. Uns, clássicos, como eu gosto, outros, comprados ao talento dos jovens artesãos do século XXI, plenos de arrojo.
Mas este é especial porque as figuras foram feitas por um dos filhos que vão deixando de ser crianças; não sei se pela mais velha, se pelo do meio. Pelo mais novo não foram as figuras feitas , de certeza, porque ele ainda é uma criança.
No Presépio estão dois Meninos: Um , ri desalmadamente, nas palinhas deitado. O Outro dorme no colo, quente, de sua Mãe. Um, feito Cristo por destino; o outro igual a todos os que um dia nasceram; nem Ele, por ser quem é, deixa de ser o Menino de sua Mãe, dois destinos que coincidem, como no poema de Pessoa:

No Plaino abandonado
Que bela brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-
Jaz morto e arrefece.
___
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, loiro, exangue
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
___
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O Menino de sua Mãe"
(...)
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo e bem"!
( Malhas que o império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino de sua mãe.

6 comentários:

Mário disse...

Para mim, Miguel, o melhor poema de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) sobre Cristo é o que fala da sua vinda à terra, como menino.
Atrevo-me a transcrevê-lo, mesmo correndo o risco de ser fastidioso, porque é belo e só todo faz sentido.
Aqui o deixo:

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.



Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

ana v. disse...

Miguel,
Cá estou, back to virtual life.
E, logo que chego aqui, dou com "O menino de sua mãe", palavras bonitas e impressionantes que nos fazem pensar que até os piores carrascos da história foram, algum dia, "os meninos" para as suas mães. O que, de alguma maneira, redime toda a humanidade. Sabemos o poema quase de cor mas tem sempre um efeito fortíssimo em nós, não é? Bem escolhido, nesta época de Natal. É bom termos todos a noção da nossa relatividade.
Vou aparecendo.
Um beijinho e Bom Natal.

miguel disse...

Obrigado Mário pelo poema que complementa a entrada. Não o conhecia Estes complementos tornam-se , assim, descobertas, logo, ganhos. Quanto à pomba e ao Espírito Santo , talvez os aborde um dia - acho que não são tão estúpidos como isso ( Ó Alberto), pelo contrário.

Ana: gostei da tua aparição e obrigado à tua mana , que, acho, foi lesta em me fazer anunciado.

Huckleberry Friend disse...

O menino de sua mãe lembra-me sempre outro poema, este de Jean-Arthur Rimbaud. Reggiani declamava-o sempre antes de cantar Le déserteur

Le Dormeur du val (Novembro 1870)

C'est un trou de verdure, où chante une rivière
Accrochant follement aux herbes des haillons
D'argent; où le soleil, de la montagne fière,
Luit: c'est un petit val qui mousse de rayons.

Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue,
Et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
Dort; il est étendu dans l'herbe, sous la nue,
Pâle dans son lit vert ou la lumière pleut.

Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
Sourirait un enfant malade, il fait un somme:
Nature, berce-le chaudement: il a froid.

Les parfums ne font pas frissonner sa narine.
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine
Tranquille. Il a deux trous rouges au côté droit.

Mário disse...

Miguel
A humanização do Cristo, nas palavras do Alberto (como já morreu há mais de 70 anos podemos dar-mo-nos ao luxo de o tratar assim - perdeu já os direitos de autor), são pérolas.
A pomba é estúpida. Acredito que sim. Não gostaria de ter uma pomba como animal de estimação, embora tenha encontrado uma pomba da paz numa extraordinária obra de arte num azulejo de Carlos Viseu, de Almoçageme - em boa hora o meu Pai a resgatou do atelier dele e a colocou na casa do Algarve.

O Divino Espírito Santo dá pano para mangas, até explicará parte da rivalidade entre a Terceira e São Miguel. Mas quanto a pombas e pombos, quando os vejo tranquilamente pousados no relvado da Alameda, só me dá vontade de correr atrás dele para os assustar - pois é... descubra o Mugabe que há em si!!!.

Abraços, e "boas águas".

PS: Manel Teixeira, escusas de vir falar de "pombinhas"...

Mário disse...

Desculpa o ero de português: darmo-nos!