segunda-feira, 31 de março de 2008

crónicas de Lisboa (V)




A foto e o "boneco" que ilustra o cartão de boas festas foram criados com 3 anos de diferença. Ambos se referem a um plano, muito semelhante, das Portas do Sol, um ícone da geografia da cidade de Lisboa. A foto, captei-a , sem ter conhecimento do carácter, também ele icónico, do plano. Escolhi apenas um ponto de vista que me pareceu significativo enquanto ilustração de um lugar. Há uma coincidência evidente naquilo que une foto e cartão de visita e que é reforçada até pela diacronia temporal. E depois porque o autor do "boneco" é o PMBC, autor do blogue " Bonecos de Bolso " ( que vale uma visita diária) e, também, meu amigo. O Pedro é arquitecto e é um homem de características marcantes: excepcionalmente discreto, exercita uma boa educação - quase enervante, quase excessiva; é um andarilho impenitente - penso, que por vezes também, penitente - que calcorreia , periodicamente, pedaços de natureza por esse mundo fora; é o criador das únicas paellas que já comi, tão saborosas e bem confeccionadas que, estou certo, são e serão as melhores paellas que alguma vez comerei; é proprietário de uma extraordinária casa, bem escondida nos ares e no verde da Serra de Sintra, cujo desenho tudo deve à técnica e ao talento do seu dono - injusto seria não falar, igualmente, do charme e bom gosto dos interiores que são devedores de semelhantes qualidades da Rita.

Ora o traço e a arte do Pedro , patentes nos seus inúmeros" bonecos " e ilustrações, têm de certeza razões genéticas que se sobreporão às razões culturais e académicas: ele integra, pela via familiar, uma linhagem de extraordinários artistas plásticos que marcaram e marcam a paisagem artística do nosso país. No príncipio da linha destaca-se o seu bisavô, Alfredo Roque Gameiro cujos filhos , quase todos, lhe herdaram o talento. Uma delas, Mammia, avó do Pedro, casou com Jaime Martins Barata, genial ilustrador cuja obra urge conhecer, sem demoras.

A propósito de Roque Gameiro e descendentes recomendo vivamente um site - muito familiar, muito caseiro, a exigir , pela riqueza potencial do conteúdo, a intervenção de profissionais - cuja não consulta tornará esta entrada meio vazia e inconsequente.

O site chama-se a Tribo dos Pincéis e nele se pode tomar contacto , entre curiosidades várias, com muito do que de notável esta família tem criado, veiculando talento através do pincel e da tela. IMPRESCINDÍVEL .

domingo, 30 de março de 2008

e ela a dar-lhe com o Eric Clapton...

Tive um sonho. O que me resta da memória desse sonho é o que retive dessa fracção de tempo em que acordamos e o sonho parece ainda decorrer. Passo a explicá-lo : estava sentado num banco corrido, de madeira, envolto na sombra feita por uns quantos carvalhos cujas bolotas, espalhadas aos meus pés, eram o sinal de que, assim a sorte o permitisse, talvez eu pudesse testemunhar a aproximação de um esquilo em busca de alimentos. Estava só e folheava três livros em busca de passagens neles descritas que, de alguma maneira, me sintonizassem com a solidão e a natureza que , com prazer, busco frequentemente. Num repente, por detrás da folhagem sinto que se fixam em mim uns olhos amendoados e doces, cúmplices , como se eu fosse um velho conhecido. Não era um ser misógino, um espectro difuso ou da mitologia. Tinha formas de mulher e vestia até calças justas, de fazenda cinzenta e a camisa, curta, descobria-lhe o baixo ventre e uma pequena tatuagem do lado do apendice na qual estavam, em rosa, as letras do meu nome. Como um sonho, arbitrário, nos informa apenas daquilo que quer, percebi que foi intenção do sonho que eu identificasse Vanessa naquela visão , tão nítida quanto imprevista. Era Vanessa, sim, a mesma que me interpela, misteriosa, aqui no blog, propondo, alterando, criticando e me escreve dando dicas para entradas, expondo paixões, traindo , aqui e ali, a sua tendência - que todos temos - de caír nessa forma de apaixonamento que é a obsessão.
Foi-se a Vanessa, logo, como apareceu, por detrás da folhagem, envolta em fumos e também num odor bom que já não consigo recordar. Acordei , sereno, e desse acordar guardo a ausência de tensão erótica , apenas uma vontade de retomar o sono sem procurar outro alívio que não o da paz dos Anjos.
Mas a Vanessa, anda no éter e , presumo, algures no mundo, chorando e rindo e sonhando. E contacta-me, amiúde. como agora. Admiradora incondicional de Eric Capton deixou-me a informação de uma efeméride e um nova versão de Layla para partilha com os leitores do Algeroz!. Concedo-lhe esse desejo e espero que não se fique apenas pelas sugestões mas passe a intervir mais, polemizando o pormenor, a desatenção e lançando imperceptíveis sementes de intriga como só as mulheres sabem fazer.
Efeméride: Eric Clapton faz hoje, dia 30 de Março de 2008, 63 anos.
Canção : Layla, em dueto e em versão acústica, com Mark Knoffler.

sábado, 29 de março de 2008

Crónicas de Lisboa (IV)


Dá-se o caso - assaz revelador de puerilidade -de eu substimar, com frequência, a infinidade de tipos humanos que se cruzam comigo, nesta contemporaneidade que quis o caminho da existência partilhássemos. Carlos do Carmo é um exemplo dessa tendência que creio partilhar com outros. No entanto, por detrás daquela irritante postura de "poseur", esconde-se um mundo que urge, estou convicto, descobrir. E tenho descoberto , por exemplo, que nada do que diz nas entrevistas que dá, cai num dos inúmeros sacos rotos que pendem da minha atenção: pelo contrário, descubro-lhe , com frequência uma lição, ou uma proposição ou uma sugestão que me provocam quase sempre meneios faciais de assentimento. Depois há, "tout-court", a sua belíssima música, que obrigatoriamente se deve catalogar como do melhor que se fez no último quartel do século XX: à sensibilidade do então jovem farejador da vida que eu era - atento, como condição de sobrevivência, ao rock sinfónico, ao disco-sound e ao Elton John - jamais escapavam esses meios fados, meio canções, inovadores e belos, que nasciam da inspiração de notáveis compositores que por essa via se deram a revelar. Eram, também, os poemas, os quais , datados embora, transmitem ainda hoje , como poucos outros, a côr , a luz, os cheiros e o movimento desta Lisbela do Pedro e de todos nós. Em Carlos do Carmo há, da palavra, a capacidade única de dizê-la como se fôra dita, somente, embora cantando. E que bem que ele canta, não obstante; que voz tão apenas dele. Dela se dirá, uma vez desaparecida, que desapareceu a "voz", seguramente. Como outras, poucas. Do seu percurso profissional, composto da mais pura criação, inovadora e profícua, ressalta o carácter eminentemente colectivo que o caracterizou. Carlos do Carmo retirou Lisboa duma letargia a que mesmo as coisas belas não se furtam , não haja alguém que as reinvente. Tornou-a, então, mais ela própria ao mesmo tempo que a universalizou.


Não mais haverá crónicas de Lisboa sem que por elas erre, algures, o espectro , quase tutelar, desse artista engravatado cheio de um profissionalismo excessivo chamado Carlos do Carmo.

quinta-feira, 27 de março de 2008

tango...


A un viejo Gringo


Desde un rincón muy tuyo me llamás
con un recuerdo azul que vuelve a atrás
la compinchería de aquel guiño...
el santo y seña de tu cariño
La mano sobre el hombro alguna vez
diciéndome muchacho no aflojés!
Y esa austeridad que con los años comprendí
la escuela en la cual crecí...
Con el puro amor de hijo,
con el regocijo de vencer tu adios
vuelvo a revivir cada domingo
¡Viejo Gringo, junto a vos!
Con el tibio pan del alma
la ternura en calma de tu corazón
Cuando en aquel patio con macetas,
era un son de canzoneta, tu canción
Te hubiese dado mucho,mucho más
Y ahora cuando puedo ya no estás...
pero siento mía tu presencia,
en algún plano, de la conciencia
Te hubiese dado mucho, mucho más
La vida fue tan terca en su compás,
no pudiste ver esos retoños del amor
naciendo de un capullo en flor


Para saber mais sobre o poema, sobre a canção que o acompanha, para ouvir tango e finalmente conhecer Eládia Blasquez é necessário navegar um pouco por este excelente blogue

quarta-feira, 26 de março de 2008

Crónicas de Lisboa (III-a)


Do amigo Farteleker,e a propósito da entrada anterior, foi aqui afixado comentário que merece honras , ele próprio, de nova entrada. Nele é descrito um programa de " Fartleck Urbano Nocturno" que eu estou disposto a reanimar com o nome de " Quem Se Chega À Frente ?". Não é aquilo que a se chama uma proposta exigente do ponto de vista físico , mas não deixa de ser uma proposta engraçada , original e abrangente para passear pela Lisboa das Colinas.
Segue a transcrição do referido comentário, aceitando-se desde já inscrições , achegas e alterações ao percurso.

"Tive um grupo de fartlek urbano noturno que, uma ou duas vez por semana, fazia um trajecto semelhante ao que passo a descrever: 21.00h - encontro na estátua do D. José; corrida lenta pela R. Augusta, Rossio, Restauradores; Subida da Calçada da Glória, continuação pela S. Pedro de Alcântara, D. pedro V, até ao Principe Real; Descida da Rua da Conceição à Glória, Av. da Liberdade, até ao largo da Anunciada em ritmo lento. Primeira pausa. Subida em sprint da calçada do Lavra até ao jardim do Torel. Pausa para alongamentos; Continuação em corrida normal pelo Campo dos Mártires, paço da Raínha, Calçada do Pombeiro, Rua Antero de Quental, sempre a descer, até ao Intendente. Daí, apanha-se a Damasceno Monteiro até lá a cima à à Senhora do Monte. Nova sessão de alongamentos desta vez com a melhor vista que a cidade tem. Daí desce-se pela Rua da verónica até ao Campo de Stanta Clara e atravessamos Alfama até ao Campo das Cebolas, passando pelo largo de S. Miguel, sempre de olho nos Pittbuls. Iniciava-se então uma fase de corrida plana ao longo do rio até determinado ponto da 24 de Julho, às vezes Alcãntara, de onde se voltava para trás, geralmente pelas Janelas Verdes, Rua da Boavista até última paragem antes da derradeira prova: A subida da Rua do elevador da Bica em Sprint até ao Calhariz. Finalmente, em ritmo de repouso, até à porta do Bar da Esquina na rua da Barroca onde nos esperam uma imperial e um cigarrito retemperadores. São 22.30h e ainda há pouca gente no Bairro Alto.E vai-me faltando companhia e pernas para este programa...
O Fartleker

terça-feira, 25 de março de 2008

crónicas de Lisboa (III)


O SUSTO...


Apanhei o eléctrico nº 28 nos Prazeres , junto ao cemitério, os quais aliás o meu filho mais novo, ingénua mas certeiramente logo me disse que "... tinham a ver com desmancha prazeres "( na infância, não obstante a candura, descobre-se por vezes a pólvora ). Ao lado do nº 28, estava indicado o destino da carreira - " Martim Moniz". Ignorante, questionei-me logo e questiono-me ainda agora com que artes é que um eléctrico que sobe a costa do Castelo vai desembocar no Martim Moniz.

Embarquei mais confiado que desconfiado no sucesso da viagem, até porque o 28 é o eléctrico das colinas de Lisboa que transporta consigo o charme e a leveza dos turistas. Connosco, aliás, tinham embarcado , tanto quanto me foi possível entender, alemães, ingleses e espanhóis; muito espanhóis. Sorri para o pequeno , seguro , como disse, do sucesso de mais este desiderato a que me impus, enquanto progenitor.

Mas cedo ficámos submersos de uma gente formidavelmente picaresca: uma velhinha dialogando consigo própria , relatando aventuras sem um fio condutor; um homem menos velho, incrivelmente obeso, extremamente volumoso, de mãos sapudas com uns olhos indiciando cegueira por detrás de uns óculos de corte grosseiro, não obstante transportar consigo, amassado numa mão, o jornal "Público" e que, no meio de um dos solavancos do eléctrico falhou a pontaria que fez ao único assento disponível e sentou-se, com violência, no colo de um alemão que desdobrava , com parcimónia, um mapa da cidade de Lisboa ; um africano, pleno de odores e três ciganos , de postura preocupantemente duvidosa , lançando imprecações , debitando palavrões como quem respira o ar mais puro e cuja vítima principal - além da reputação da carreira 28 e , em última análise, a própria Lisboa - foi um homem aloirado, entrado na idade, munido de brincos e piercings e olhar esgazeado , o qual os ciganos elegeram como aquele pedaço de mato inútil que só embaraça e se desbrava à catanada. Temi, sinceramente, ter que denunciar carteiristas em acção.

Saí com muito esforço pela porta da frente, rompendo desesperadamente por entre a multidão de rostos tensos , na primeira paragem que eu associei à proximidade do Castelo de São Jorge. Não fora essa sensação de domínio e conquista que é estar na torre de menagem do castelejo e a insistência hilariante do meu filho chamar " Zé Jorge" ao São Jorge e também uma esplanada deserta que descobri e, já agora, uma outra , situada no terraço de um edifício, algures, no labirinto de telhados que vão ocupando a colina até ao castelo e também a espuma feita pelos cacilheiros e o recorte da outra margem mais as cogitações possíveis quanto à requalificação da zona da Lisnave, ali, à flor da imaginação e , enfim, a vista de Lisboa toda mais o azul variável do Tejo , e desconfiaria que o desiderato a que me obriguei estava adiado até nova oportunidade.


A escola real (VIII)


Actualiza regularmente a sua página do Hi5 e assim vai mantendo o contacto com os amigos e fazendo outros, através daqueles que acedam ao seu domínio virtual. Nas redes sociais podem-se fazer amigos numa progressão exponencial: basta que o amigo do amigo tenha o endereço do primo do vizinho para que um jovem filho de emigrantes na Austrália aceda à página pessoal de um outro cuja vida decorre algures, na planície ondulada alentejana, e para que estes dois jovens passem a integrar um grupo, cada vez menos restrito, de cibernautas que partilham interesses e se consideram, enfim, amigos, num processo que mais parece coleccionismo de afectos, sem grande critério que não seja o quantitativo.

Tem apenas 12 anos e respira o mesmo ar que é possível ser respirado nessa imensidão de verde que a foto revela ( captada domingo de Páscoa ). Mora nas faldas do relevo suave que domina o plano recuado da paisagem. O rosto é a fotocópia da mãe mas em tudo o resto parece , já, a reprodução , versão século XXI, do percurso de vida do Pai: comunica através de vocábulos quase incompreensíveis a comporta-se conforme a extrema rudeza do campónio. Nutre uma aversão, dir-se-ia atávica, à escola, que vai sendo mais evidente à medida que o insucesso se vai instalando. Falta às visitas de estudo por desinteresse, com o assentimento tácito dos progenitores. Paralelamente vai miscigenando, corpo e alma , com hábitos ancestrais. Ligam-no , já, à terra, aqueles laços que se foram forjando pelas gerações que dela sabem vir o sustento. É uma relação que rapidamente se torna muito mais afectiva do que de mero interesse: uma forma , essencial, de amar.
Soube-o domingo: o Pedro é já o criador do mais belo faval da localidade. Dizem-no os homens e , principalmente, as mulheres que cobiçam o produto. O Pai deu-lhe um cabra e dois cabritinhos que são pelo jovem criados com cuidados de puro profissional. Nada falta aos herbívoros: desde uma cerca que o Pedro construiu com esmero até todo o potencial de um crescimento saudável que a boa alimentação fornece. Enquanto isso vai-se tornando num mestre-artesão, autor de miniaturas perfeitas que retratam o imaginário milenar daquela gente. Acompanha o Pai nos fretes que este faz enquanto sócio de uma empresa familiar de camionagem: vai-se fazendo um especialista em desvendar os segredos escondidos nesses monstros motorizados. Em tais preparos , a escola tornou-se, para ele, um mero acidente de percurso que os pais, aliás, tudo fazem para desvalorizar.

A questão é: o Pedro desenvolveu competências ao nível do saber-fazer e do empreendedorismo e demonstra um potencial notável para as rentabilizar de futuro. Como explicar, neste quadro, o divórcio precoce que o jovem contratualizou com a escola?

segunda-feira, 24 de março de 2008

crónicas de Lisboa (II)




A 5ª feira Santa remete para um valor que me é muito caro: a humildade. De humilde só me posso considerar enquanto homem sem património de jeito que possa, como quem não quer a coisa, exibir orgulhosamente aos amigos. Mas quis talvez o destino que na 5ª feira Santa de 2008 tenha feito algo cuja revelação me vai obrigar , hoje, a ser humilde perante vós pelo que essa revelação possa contradizer a ideia que tenho e que me atribuem de ser um pai quase perfeito: foi nesse dia que pela primeira vez levei os meus dois mais novos a visitar a sua cidade-natal, obedecendo a um plano rigoroso; consistente; culturalmente direccionado; não fazendo concessões às armadilhas do acaso e aos caprichos dos humores momentâneos.

Cumprindo uma vontade antiga e aproveitando as informações úteis que a Sofia me transmitiu em tempos, decidi levar os meus descendentes directos a visitar os belos miradoiros de Lisboa não sem que antes os instruísse acerca da topografia da cidade ; do conceito de centro enquanto pólo fundador; de fuga à periferia enquanto igual fuga ao abastardamento urbano; do verde e do rio, das edificações e das ruas estreitas e sinuosas que fazem da nossa Olissipo a mais bela urbe do mundo para cujo regaço apetece sempre voltar.

As fotos que acompanham a entrada ( por mim captadas ) são um ínfimo testemunho do prazer que me deu ser um pai mais responsável e organizado nesse dia: era uma pedra que eu tinha nos meus envelhecidos sapatos, pedra áspera e rugosa causadora de mais dor do que o joanete que me atormenta e deforma o dedo grande do pé direito!

sábado, 22 de março de 2008

os outros...


Ter 50 anos, é bom, já o referi. Pelo menos para mim. Se eu vivesse isolado como um eremita, diria que só percebi que estava prestes a completar meio século , dois dias antes do próprio dia de aniversário, porque foi isso que, de certa maneira, aconteceu. Mas não sou um eremita: ainda bem, não obstante ter alguma tendência para sonhar,às vezes, que sou proprietário de uma caverna ( com bastas mordomias) na qual me posso refugiar quando o peso dos outros se me afigura excessivo.

Não, não vivo só. Vivo, , sem grandes dramas, em sociedade. E é essa mesma sociedade que me vai dando sinais que estou a envelhecer. A sinalética desenvolve-se de uma maneira subtil mas quando chega é para ficar. Há 30 anos todos me tratavam por tu e, nas altercações originadas em problemas de trânsito eu era o primeiro a"enfardar", já que é desta maneira que a sociedade trata os novos, aqueles que estão na força da vida. Como fui um professor muito jovem, era, então, vítima de assédio por parte das alunas, umas vezes de maneira insidiosa, outras, de maneira escandalosa. Respondia a esses avanços com poucos cuidados e uma relativa soberba, como se tudo isso fôra uma espécie de destino. A natureza seguia, plácida, o seu rumo , e por mim passavam,naturalmente, com placidez, os dias, as semans, os meses e os anos. E , um dia, há O dia em que o pronome pessoal utilizado na comunicação com a minha pessoa evolui para formas culturalmente condicionadas e tudo muda sem eu o perceber logo: primeiro, Você; e depois, o Senhor. O descaro no trato dá lugar a uma deferência , gradualmente mais notória. Descubro que os outros começam a ter cuidados redobrados em não ferir a minha sensibilidade, sem quererem saber da minha efectiva sensibilidade, que é o que interessa. Não mais me provocam para o confronto físico, antes o evitam. De macho imberbe mas culto , apetecível e ainda por cima douto,vou-me transformando , com o tempo, num pai, conselheiro e respeitável. Como pai vou ganhando estatuto e nesse estatuto repouso até ao dia e que perguntam se " aquele menino é seu netinho". O mais desconhecido dos empregados de uma qualquer estação de serviço não me vende tabaco sem que antes me avise, simpaticamente, dos malefícios do fumo. O paternalismo instala-se, insidioso, não obstante os esforços que faço para o evitar. Passo a sénior e a veterano IV, sem que para essa classificação seja tido ou achado.

Cá por dentro de mim próprio, sinto-me como se tivera 20, vá lá, 30 anos. Mas há sempre alguém a lembrar-me que, por fora, as coisas não se passam mais assim; sempre alguém a lembrar-me, todos os dias, todas as horas, todos os segundos.

Sinto-me bem nos 50 anos: assumo tudo , desde os cabelos brancos, aos cuidados excessivos e à deferência. Tolero o paternalismo. Mas às vezes chateia lembrarem-mo constantemente. E então , também por vezes, apetece-me parafrasear, com grosseria, Sartre e gritar" pourra, o inferno são mesmo os outros".

quinta-feira, 20 de março de 2008

Páscoa...


O imaginário que sobra no Natal, escasseia na Páscoa. A blogosfera de referência, a institucional ou a intimista, correm todas como se a época que vivemos fosse um interlúdio entre o aconchego invernal e esse outro tempo em que os corpos se libertam e fazem apelo ao pecado da luxúria. No entretanto a Igreja celebra o Mistério da Ressurreição , cuja negação faz a dúvida e os ateus. Andam por aí os sinais do Tempo Pascal: os mais belos trechos musicais; as manifestações de fé arreigadas à cultura popular; os clássicos do cinema; as celebrações; a gastronomia e também o jejum e a abstinência. Mas nós, sedentos da tradição, pouco mais fazemos do que açucarar ovos e coelhos. Porque será?

quarta-feira, 19 de março de 2008

"The Five Pennies"


Há propostas que são verdadeiro apelo à memória adormecida. The Five Pennies é um filme estreado em 1959, estava eu a ensaiar os primeiros passos e estavam os meus pais a perceber que este seu então novel andarilho prenunciava já aquilo que viria a ser por muito tempo : um língua de trapos. Meio tolo, também. E incrivelmente sensivel: chorava à mínima emoção forjada no mundo que me povoava os sentidos, como quando, por exemplo, ouvia as músicas de The Five Pennies . Tinha o costume de ficar, deliciado, em frente ao gira-discos a ver o LP rodar enquanto trauteava as melodias às quais Danny Kaye e também Louis Armstrong deram tão terna voz. E, claro, ficcionava a própria ficção como uma tragédia feita de dramas e separações até porque da história fazia parte uma linda criança que sofria com as desventuras do pai. Chorava, então, a bom chorar. Enredo imaginado, está bem de ver , porque nunca vi o filme do príncipio ao fim. Das suas músicas e daquele tempo bom da minha tenra infância lembro-me, no entanto, muito bem. Recordei-os agora, via novo desafio do Manel.
Obrigado mais uma vez, Manel . Fiquem com " Little Pennie" e deliciem-se.


terça-feira, 18 de março de 2008

je sais...



há propostas que têm que ser aproveitadinhas na hora. Senão esquecem-se, apesar de ficarem por aí à mão de semear mas à míngua de quem as semeie. Como esta, do meu amigo Manel. E, já agora, lembremos ou relembremos, com algum pormenor, l' inoubliable Jean Gabin.

desporto (II)




Desmistificando alguns preconceitos absolutamente fossilizados àcerca da corrida de fundo:

P. Y, encima, es usted asmático, ¿no?
R. Sí, soy asmático. No puedo correr allí así. (em Pequim, por causa da poluição)

HAILE GEBRSELASSIE , plusmarquista mundial de maratón y doble campeón olímpico ( nesta entrevista recentíssima ao jornal El Pais )

P. E fumas 2 maços por dia?
R - Sim e, no entanto, faço 1H45m à meia maratona e treino-me já para fazer uma maratona.

MIGUEL LEAL , atleta amador, em entrevista ficcionada prestando, no entanto, declarações verdadeiras.

segunda-feira, 17 de março de 2008

inferno


Aaron Spelling é o único produtor de filmes norte-americano de cujo nome me lembro. E foi há muito que o fixei: estive em Los Angeles em 1989 e tive, então, uma grande curiosidade de ver a sua luxuosa casa no bairro de Beverly Hills, quando do "menu" turístico constavam mansões de grandes nomes do cinema que não causaram em mim a mesma curiosidade. Mas - perguntar-se-ão - porque Aaron Spelling e não outro? Explico: há em muitas das suas produções uma espécie de denominador comum que tem a ver com o género "thriller" ou com temáticas de fundo sobrenatural. Quando se trata de Aaron Spelling, não são os actores nem o realizador que me chamam a atenção para o filme, mas o seu próprio nome. Há, para mim, uma "marca" Aaron Spelling.
Ora o enredo de um desses filmes não esqueci mais. Um grupo de homens e mulheres embarca num avião e aterra, passado algum tempo, numa ilha paradísiaca e desconhecida para todas eles. Logo à chegada são transportados a um hotel onde não falta nenhuma das mais exclusivas mordomias. Vão descobrindo que têm todo o tempo que pretendem para usufruir dessas mordomias. Vão descobrindo também que o mais pequeno capricho lhes é, de imediato, satisfeito. Os dias vão-se passando desta maneira. Mas algo não bate certo: ninguém se conhece, entre si. Não há nada que os ligue a não ser a coincidência de uma viagem em comum, para a qual não fizeram marcação. E para uma viagem, por paradísiaco que seja o destino, há sempre o momento de regresso. Preocupados, descobrem que esse regresso lhes está vedado: o aeroporto é inexistente e os empregados do hotel esfumaram-se. Descobrem que a única companhia que lhes resta são eles próprios.
Não há conflitos; e os caprichos continuam a ser , misteriosamente, satisfeitos. Mas existem as saudades dos que ficaram para trás; a simples vontade de ver diferente; a necessidade de regressar ao mundo difícil, o dos conflitos e da rotina do quotidiano. O regresso como simples lugar da liberdade. A vontade do regresso dá, então, lugar ao desespero - querem sair dali e não podem. Percebem então que estão definitivamente prisioneiros do luxo. O filme termina como que num impasse : a eternidade como um horroroso beco sem saída; a eternidade como um inferno sem chamas nem diabo.
É esta perspectiva diferente de inferno que os teólogos discutem actualmente. Li, algures, um artigo em que se aceita o inferno como, por exemplo, um lugar em branco, despido do mal e do bem e, por isso, sem possibilidade da descoberta. Um lugar onde se tomaria consciência que a descoberta está no outro, nos novos outros com que diariamente nos cruzamos e convivemos; o outro, enfim, como caminho para chegar a Deus. E aceita-se também, que, como Deus nos ama incondicionalmente, o inferno, em última análise, não existe. Esse local de solidão seria apenas um período passageiro, de tomada de consciência para os mais pecadores. No fim, todos seríamos salvos e partilharíamos da mesa do Pai.

domingo, 16 de março de 2008

poder...







Tenho, já, 50 anos e um mundo novo se perfila, para mim, num horizonte não excessivamente distante. Nele habitam seres plenos de sabedoria, pragmatismo e algum desencanto que deriva dos dois primeiros atributos. Navegam geralmente num mar brando, de serenidade.
Até por tudo isto, vejo com alguma preocupação a minha incapacidade de compreender certos aspectos absolutamente recorrentes da vida em sociedade. Falo nomeadamente no PODER naquilo que ele tem a ver com a sede, ou a apetência ou o vício ou a loucura que ele próprio gera. É-me muito difícil equacionar o poder no que diz respeito a expressões como " dinheiro é poder"; "o poder é erótico"; " o poder vicia"; " queremos o poder para ficar na história". Muito mais fácil é para mim descodificar as mais complexas descobertas da ciência e da física. Pasmo com a coragem - sim, a coragem - dos poderosos , usfrutuários plenos do seu poder, que preferem ir-se da vida a ceder o poder que foram construindo. Porque eu não sei o que é gostar de poder exactamente como muito bem sei o que é não gostar de língua de vaca. E gostaria de entrar, nem que fosse por uns segundos, na pele profundamente humana dessa gente que -isso sim, vou percebendo - não é tão pouca como isso, no conjunto da sociedade que integramos desde que nascemos.
Haverá por aí alguém que me explique o poder?

sexta-feira, 14 de março de 2008

aforismos de algeroz (VII)

Nós, os humanos de sorte que vivemos em sociedades democráticas, continuamos a estar muito mais atentos à defesa dos nossos direitos do que à defesa dos nossos deveres.

Eça ...


Ironista como poucos, o génio de Eça de Queiroz descobre-se nos mais curtos períodos ou num livro todo, sem concessões à vulgaridade, por muito que elas se busquem. Não sei se a última impressão que da sua leitura retiramos não será sempre um humor enorme, elevado até nos pormenores mais escabrosos do escabroso que compõe a natureza dos seus relatos. E não serão os seus textos a biografia escondida de todos nós?
A transcrição que segue é uma migalha de um pequeno e delicioso livro - " O Mandarim" - e causou-me de imediato gargalhadas e vontade de partilhá-las com os outros.

" Os primeiros meses ricos, não o oculto, passei-os a amar - a amar com o sincero bater do coração de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como numa página de novela, regando os craveiros à varanda: chamava-se Cândida (...) Todas as noites eu caía, em êxtases de místico,aos seus pés cor de jaspe. (...)
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete sírio, até ao seu boudoir - ela estava escrevendo, de dedinho no ar: ao ver-me toda trémula, toda pálida, escondeu o papel que tinha o seu monograma. Eu arranquei-lho , num ciúme insensato. Era a carta, a costumada carta, a carta que desde a velha Antiguidade a mulher sempre escreve; começava por " Meu idolatrado" - e era para um Alferes da vizinhança.
Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor, e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles; e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica."

segunda-feira, 10 de março de 2008

nascida a 10 de Março de 1958...


...estava eu a sair da maternidade.


Diz-me muito esta mulher: nascida quando eu nasci, quer dizer que foi crescendo como eu cresci, minha contemporânea toda, apenas com a nuance que deriva das nuances de género, as quais tornam aliás mais significativo tudo o que ela me diz. E que bom saber que há jovens que dela vão dizendo, ainda, com genuinidade e convicção "...eu diria que está muito boa, mesmo com esta idade".

aforismos de algeroz (VI)


Quem ousa verter lágrimas de maneira fácil como quem representa, contribui para banalizar de maneira irreversível as lágrimas da dor íntima e profunda que obrigam ao abraço que aconchega e estimulam o encontro que humaniza.

sábado, 8 de março de 2008

fazer 50 anos em 2008...

( cartaz publicitário do ano de 1958)


Fazer 50 anos em 2008 é um privilégio. Recebe-se felicitações institucionais , madrugada fora, via correio electrónico, destapando o lado mais enternecedor do capitalismo global: ofertas de descontos em compras do Continente online; simpáticos desejos de longa vida do Millennium e chamadas de atenção "para o dia especial" do site mediabook, já para não falar dos insistentes lembretes de aniversário da operadora de telemóvel que uitlizamos.
Sentimos, pela primeira vez, que tomamos posse de um estatuto que nenhuma tabela retributiva nos concede. Os cabelos brancos ganham, finalmente, uma lógica e com eles iniciamos um convívio saborosamente pacífico. Reforçamos a ideia que a vida é mais erro que acerto mas sentimo-la com uma leveza que até então era peso: a longevidade começa a ser toda uma oportunidade que se abre à contrição e ao início consequente da revisão de vida, tenha esta o horizonte próximo de dias ou o piscar de olhos, lá no fundo da rua por onde acabamos de entrar, do outono irreversível. Os olhos humedecem na descoberta que é possível tornar a vida num jardim de buxos ou numa planície verde da água recente ou num monte de recorte suave rompendo o céu, ou nos sonstrazidos pelo vento de ramos e de passáros - a mesma vida que era habitada, até então , na mesma percentagem, pelos filhos da madrugada e pelos filhos da puta - como quem vê cumprida a exequibilidade do projecto da utopia.


É, de facto, um privilégio ter 50 anos.

sexta-feira, 7 de março de 2008

a escola real (VII)


Tenho de me embrenhar todos os dias e por momentos, nesse verdadeiro ecossistema que é a praça de Benfica e, ainda por cima, logo pela fresquinha da manhã, para levar o meu pequenino filho à escola. Aquele ecossistema é habitado por várias comunidades humanas, uma ou outra animal ( cães e gatos) e naturalmente o omnipresente representante dos factores abióticos: o ar, não poucas vezes irrespirável naquele local. De entre as comunidades humanas lá da praça, destacam-se os ciganos, vendedores de tudo e de nada, possuidores , na função, de artes várias e manha apreciável. São geralmente mal-encarados, cospem para o chão, fazem os outros esperar quando se trata de estacionar as suas "comerciais" ( todas brancas e da mesma marca) e desconhecem o sorriso , o cumprimento ou expressões como "por favor", "peço desculpa" ou "obrigado". Todos os dias me parecem mais provocadores do que no dia anterior. Ameaçam , utilizando o calão e, nisto, são extremamente eficientes : raramente passam a vias de facto. Não tenho provas, mas estou convencido que, em caso de confronto físico, se encontram sempre prevenidos com meios de defesa relativamente adequados, não vá o "diabo tecê-las".
É neste quadro que os ciganitos começam a invadir a escola , ao nível do 5º e 6º anos ( antes frequentavam, quando frequentavam, as escolas do 1º ciclo). Tal corresponde há 2ª massificação do ensino, que está em pleno curso. Trata-se, aliás, justiça se faça, de cumprir um objectivo programático do governo, enunciado como prioridade. A ideia é a seguinte : obrigar todo e qualquer jovem a frequentar a escola até aos dezoito anos e o resto logo se vê.
Como as crianças são o espelho da estrutura familiar em que se inserem, o caso concreto dos ciganitos da zona da Amadora é um "ver se te avias" no que diz respeito a reprodução de modelos - nem a Presidente do Conselho Executivo se safa quando se trata de "meter ordem na casa". Contaram-me que é assim, como resposta a uma reprimenda:
- Quero que sejas agredida na vagina ( utilizo, naturalmente, o eufemismo). e , garanto-vos, a autoridade máxima da Escola é uma figura que ainda vai sendo respeitada.
Mas, e sem ironias, não estou pessimista. A massificação da escola é uma das condições "sinequanon" da coesão social. Eu não me importo de ser actor ( vítima?) dessa revolução silenciosa.




quinta-feira, 6 de março de 2008


Sinto que estou de regresso, como é bem de ver , porque me pus à escrita neste espaço, que é dos poucos espaços abertos dos quais sou rei e senhor. Sinto, no entanto, que o meu regresso é incerto, naquilo que ele se possa entender como definitivo.

E não me faltaram assuntos para abordagem,entretanto: o iraniano condenado a dar 150 000 rosas à mulher, despeitada pela falta de atenção do marido e , pior, pelo incumprimento dele da promessa de dote. Os 20 anos, tão frescos ainda , da morte do Zeca Afonso e a obrigatoriedade de propôr a música e uma mini biografia de um tal David Gilmour . A lei anti-tabaco e a minha percepção passado o período, efémero, de humilhação; e mais uns aforismos; e o inferno que me interessa enquanto um novo campo de conquista:não o antigo, feito de labaredas, mas o desenho , novo e em esboço, que a nova teologia dele vai fazendo.