O SUSTO...
Apanhei o eléctrico nº 28 nos Prazeres , junto ao cemitério, os quais aliás o meu filho mais novo, ingénua mas certeiramente logo me disse que "... tinham a ver com desmancha prazeres "( na infância, não obstante a candura, descobre-se por vezes a pólvora ). Ao lado do nº 28, estava indicado o destino da carreira - " Martim Moniz". Ignorante, questionei-me logo e questiono-me ainda agora com que artes é que um eléctrico que sobe a costa do Castelo vai desembocar no Martim Moniz.
Embarquei mais confiado que desconfiado no sucesso da viagem, até porque o 28 é o eléctrico das colinas de Lisboa que transporta consigo o charme e a leveza dos turistas. Connosco, aliás, tinham embarcado , tanto quanto me foi possível entender, alemães, ingleses e espanhóis; muito espanhóis. Sorri para o pequeno , seguro , como disse, do sucesso de mais este desiderato a que me impus, enquanto progenitor.
Mas cedo ficámos submersos de uma gente formidavelmente picaresca: uma velhinha dialogando consigo própria , relatando aventuras sem um fio condutor; um homem menos velho, incrivelmente obeso, extremamente volumoso, de mãos sapudas com uns olhos indiciando cegueira por detrás de uns óculos de corte grosseiro, não obstante transportar consigo, amassado numa mão, o jornal "Público" e que, no meio de um dos solavancos do eléctrico falhou a pontaria que fez ao único assento disponível e sentou-se, com violência, no colo de um alemão que desdobrava , com parcimónia, um mapa da cidade de Lisboa ; um africano, pleno de odores e três ciganos , de postura preocupantemente duvidosa , lançando imprecações , debitando palavrões como quem respira o ar mais puro e cuja vítima principal - além da reputação da carreira 28 e , em última análise, a própria Lisboa - foi um homem aloirado, entrado na idade, munido de brincos e piercings e olhar esgazeado , o qual os ciganos elegeram como aquele pedaço de mato inútil que só embaraça e se desbrava à catanada. Temi, sinceramente, ter que denunciar carteiristas em acção.
Saí com muito esforço pela porta da frente, rompendo desesperadamente por entre a multidão de rostos tensos , na primeira paragem que eu associei à proximidade do Castelo de São Jorge. Não fora essa sensação de domínio e conquista que é estar na torre de menagem do castelejo e a insistência hilariante do meu filho chamar " Zé Jorge" ao São Jorge e também uma esplanada deserta que descobri e, já agora, uma outra , situada no terraço de um edifício, algures, no labirinto de telhados que vão ocupando a colina até ao castelo e também a espuma feita pelos cacilheiros e o recorte da outra margem mais as cogitações possíveis quanto à requalificação da zona da Lisnave, ali, à flor da imaginação e , enfim, a vista de Lisboa toda mais o azul variável do Tejo , e desconfiaria que o desiderato a que me obriguei estava adiado até nova oportunidade.
5 comentários:
Tive um grupo de fartlek urbano noturno que, uma ou duas vez por semana, fazia um trajecto semelhante ao que passo a descrever:
21.00h - encontro na estátua do D. José; corrida lenta pela R. Augusta, Rossio, restauradores; Subida da Calçada da Glória, continuação pela S. Pedro de Alcântara, D. pedro V, até ao Principe Real; Descida da Rua da Conceição à Glória, Av. da Liberdade, até ao largo da Anunciada em ritmo lento. Primeira pausa. Subida em sprint da calçada do Lavra até ao jardim do Torel. Pausa para alongamentos; Continuação em corrida normal pelo Campo dos Mártires, paço da Raínha, Calçada do Pombeiro, Rua Antero de Quental, sempre a descer, até ao Intendente. Daí, apanha-se a Damasceno Monteiro até lá a cima à à Senhora do Monte. Nova sessão de alongamentos desta vez com a melhor vista que a cidade tem. Daí desce-se pela Rua da verónica até ao Campo de Stanta Clara e atravessamos Alfama até ao Campo das Cebolas, passando pelo largo de S. Miguel, sempre de olho nos Pittbuls. Iniciava-se então uma fase de corrida plana ao longo do rio até determinado pondo da 24 de Julho, às vezes Alcãntara, de onde se voltava para trás, geralmente pelas Janelas Verdes, Rua da Boavista até última paragem antes da derradeira prova: A subida da Rua do elevador da Bica em Sprint até ao Calhariz. Finalmente, em ritmo de repouso, até à porta do Bar da Esquina na rua da Barroca onde nos esperam uma imperial e um cigarrito retemperadores. São 22.30h e ainda há pouca gente no Bairro Alto.
E vai-me faltando companhia e pernas para este programa...
O Fartleker
Caro Farlteker:
Fantástico programa é o mínimo que se pode dizer. Podemos pensar em organizar um programa idêntico agora que as noites começam a estar mais de feição. Digo programa idêntico porque dada a forma apenas razoável de alguns leitores do Algeroz! , subir a rua do elevador da Bica em sprint na fase final do percurso parece-me um nadinha excessivo. Eu manteria apenas o sprint do Lavra e subiria a Bica em trote ligeiro ou em apoio invertido para treinar um pouco a força de braços. Tudo o resto ficaria como na versão original. A data é a combinar.
um abraço
Olhe que a que custa mais é a ladeira da Calçada da Glória. parece não ter fim. A da Bica só custa nos primeiros 50m. A do lavra é a mais inclinada mas o final é em escadas, o que cansa menos.
A partir do próximo fds já só anoitece lá para as oito e meia... e, espera-se, as noites começam a ficar menos frias.
O fartleker
Alucinante, este programa, ó Fartleker. Isto diz um não-corredor militante que admira a vossa coragem.
Memorável, Miguel, esse passeio de eléctrico! Memorável também o relato, cuja graça compensa, para quem não viveu tal episódio, a falta dessa experiência. Um abraço agradecido pela menção lisonjeira ao codornizes, que não sei se mereço;)
Não te faças de modesto, ó Codorniz!!
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