sábado, 29 de março de 2008

Crónicas de Lisboa (IV)


Dá-se o caso - assaz revelador de puerilidade -de eu substimar, com frequência, a infinidade de tipos humanos que se cruzam comigo, nesta contemporaneidade que quis o caminho da existência partilhássemos. Carlos do Carmo é um exemplo dessa tendência que creio partilhar com outros. No entanto, por detrás daquela irritante postura de "poseur", esconde-se um mundo que urge, estou convicto, descobrir. E tenho descoberto , por exemplo, que nada do que diz nas entrevistas que dá, cai num dos inúmeros sacos rotos que pendem da minha atenção: pelo contrário, descubro-lhe , com frequência uma lição, ou uma proposição ou uma sugestão que me provocam quase sempre meneios faciais de assentimento. Depois há, "tout-court", a sua belíssima música, que obrigatoriamente se deve catalogar como do melhor que se fez no último quartel do século XX: à sensibilidade do então jovem farejador da vida que eu era - atento, como condição de sobrevivência, ao rock sinfónico, ao disco-sound e ao Elton John - jamais escapavam esses meios fados, meio canções, inovadores e belos, que nasciam da inspiração de notáveis compositores que por essa via se deram a revelar. Eram, também, os poemas, os quais , datados embora, transmitem ainda hoje , como poucos outros, a côr , a luz, os cheiros e o movimento desta Lisbela do Pedro e de todos nós. Em Carlos do Carmo há, da palavra, a capacidade única de dizê-la como se fôra dita, somente, embora cantando. E que bem que ele canta, não obstante; que voz tão apenas dele. Dela se dirá, uma vez desaparecida, que desapareceu a "voz", seguramente. Como outras, poucas. Do seu percurso profissional, composto da mais pura criação, inovadora e profícua, ressalta o carácter eminentemente colectivo que o caracterizou. Carlos do Carmo retirou Lisboa duma letargia a que mesmo as coisas belas não se furtam , não haja alguém que as reinvente. Tornou-a, então, mais ela própria ao mesmo tempo que a universalizou.


Não mais haverá crónicas de Lisboa sem que por elas erre, algures, o espectro , quase tutelar, desse artista engravatado cheio de um profissionalismo excessivo chamado Carlos do Carmo.

4 comentários:

ana v. disse...

Bela crónica, Miguel. Eu, que sempre achei irritantíssima a tal pose majestática que o Carlos do Carmo sempre cultivou, tenho que reconhecer-lhe uma voz invulgarmente bonita e também um bom gosto (musical e poético) inegável. Por isso acho justa a tua homenagem, e acho que tens razão ao dizer que ele ficará para a história da música em Portugal.
Um beijo

Huckleberry Friend disse...

Evoco, a propósito da atenção que Carlos do Carmo presta à música que outros vão fazendo, duas parcerias: Manhã, de Pedro Abrunhosa (no álbum Tempo), e a soberba versão de Fotos do fogo, com Camané e Sérgio Godinho, no Irmão do meio.

miguel disse...

Absolutamente, Pedro. A busca e o gosto pelas parcerias é atributo de um artista que passaria bem ao lado delas,salvaguardando o prestígio de uma carreira que está mais que consolidada.

E vou já ouvir " Fotos de Fogo".

Anónimo disse...

É um bom artista. Melhor que a Mariza, sem dúvida, mas ainda a muitas milhas da Senhora sua Mãe.
Fartleker