Ironista como poucos, o génio de Eça de Queiroz descobre-se nos mais curtos períodos ou num livro todo, sem concessões à vulgaridade, por muito que elas se busquem. Não sei se a última impressão que da sua leitura retiramos não será sempre um humor enorme, elevado até nos pormenores mais escabrosos do escabroso que compõe a natureza dos seus relatos. E não serão os seus textos a biografia escondida de todos nós?
A transcrição que segue é uma migalha de um pequeno e delicioso livro - " O Mandarim" - e causou-me de imediato gargalhadas e vontade de partilhá-las com os outros.
" Os primeiros meses ricos, não o oculto, passei-os a amar - a amar com o sincero bater do coração de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como numa página de novela, regando os craveiros à varanda: chamava-se Cândida (...) Todas as noites eu caía, em êxtases de místico,aos seus pés cor de jaspe. (...)
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete sírio, até ao seu boudoir - ela estava escrevendo, de dedinho no ar: ao ver-me toda trémula, toda pálida, escondeu o papel que tinha o seu monograma. Eu arranquei-lho , num ciúme insensato. Era a carta, a costumada carta, a carta que desde a velha Antiguidade a mulher sempre escreve; começava por " Meu idolatrado" - e era para um Alferes da vizinhança.
Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor, e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles; e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica."
Sem comentários:
Enviar um comentário