sábado, 22 de março de 2008

os outros...


Ter 50 anos, é bom, já o referi. Pelo menos para mim. Se eu vivesse isolado como um eremita, diria que só percebi que estava prestes a completar meio século , dois dias antes do próprio dia de aniversário, porque foi isso que, de certa maneira, aconteceu. Mas não sou um eremita: ainda bem, não obstante ter alguma tendência para sonhar,às vezes, que sou proprietário de uma caverna ( com bastas mordomias) na qual me posso refugiar quando o peso dos outros se me afigura excessivo.

Não, não vivo só. Vivo, , sem grandes dramas, em sociedade. E é essa mesma sociedade que me vai dando sinais que estou a envelhecer. A sinalética desenvolve-se de uma maneira subtil mas quando chega é para ficar. Há 30 anos todos me tratavam por tu e, nas altercações originadas em problemas de trânsito eu era o primeiro a"enfardar", já que é desta maneira que a sociedade trata os novos, aqueles que estão na força da vida. Como fui um professor muito jovem, era, então, vítima de assédio por parte das alunas, umas vezes de maneira insidiosa, outras, de maneira escandalosa. Respondia a esses avanços com poucos cuidados e uma relativa soberba, como se tudo isso fôra uma espécie de destino. A natureza seguia, plácida, o seu rumo , e por mim passavam,naturalmente, com placidez, os dias, as semans, os meses e os anos. E , um dia, há O dia em que o pronome pessoal utilizado na comunicação com a minha pessoa evolui para formas culturalmente condicionadas e tudo muda sem eu o perceber logo: primeiro, Você; e depois, o Senhor. O descaro no trato dá lugar a uma deferência , gradualmente mais notória. Descubro que os outros começam a ter cuidados redobrados em não ferir a minha sensibilidade, sem quererem saber da minha efectiva sensibilidade, que é o que interessa. Não mais me provocam para o confronto físico, antes o evitam. De macho imberbe mas culto , apetecível e ainda por cima douto,vou-me transformando , com o tempo, num pai, conselheiro e respeitável. Como pai vou ganhando estatuto e nesse estatuto repouso até ao dia e que perguntam se " aquele menino é seu netinho". O mais desconhecido dos empregados de uma qualquer estação de serviço não me vende tabaco sem que antes me avise, simpaticamente, dos malefícios do fumo. O paternalismo instala-se, insidioso, não obstante os esforços que faço para o evitar. Passo a sénior e a veterano IV, sem que para essa classificação seja tido ou achado.

Cá por dentro de mim próprio, sinto-me como se tivera 20, vá lá, 30 anos. Mas há sempre alguém a lembrar-me que, por fora, as coisas não se passam mais assim; sempre alguém a lembrar-me, todos os dias, todas as horas, todos os segundos.

Sinto-me bem nos 50 anos: assumo tudo , desde os cabelos brancos, aos cuidados excessivos e à deferência. Tolero o paternalismo. Mas às vezes chateia lembrarem-mo constantemente. E então , também por vezes, apetece-me parafrasear, com grosseria, Sartre e gritar" pourra, o inferno são mesmo os outros".

6 comentários:

Anónimo disse...

Pois é meu caro amigo, a alternativa aos 50 anitos não é certamente melhor.
Acredita, pois a reflecção vem de alguém que já conta mais 15 do que tu.
E podes-te considerar um homem bem feliz por todo assédio que te fizeram, tenha ele sido insidioso ou escandaloso, pois eu pela parte que me toca é algo de que não tenho memória de jamais me ter acontecido, muito especialmente o segundo. Talvez seja por isso que o assédio tenha sido algo que sempre fui EU que tive de fazer.

Mas enfim... não se pode ter tudo.

Aqui fica um abraço do amigo
Manel Teixeira

Mário disse...

Miguel (olá, Manel)
J´´a vivi essas inquietações externas há dois (ou mais) anos, mas actualmente estou-me nas tintas.
Não nego a minha idade, até porque o meu BI não me faz descontos, só que me estou realmente nas tintas. Já disseram que era velho para ser pai, que qualquer dia começava a adivinhar o tempo (há tantos anos que os meus ossos funcionam melhor do que o boletim meteorológico!), e outras balelas no género.
Mantenho: estou-me nas tintas. Detestava ter a idade que já tive, porque cada vez mais me sinto seguro na insegurança dos meus 52 - e no final do ano, 53, e por aí fora.
Ai de quem não mata os dois porquinhos mais novos, na ilusão de que acabem todos a cantar e a dançar - não podem. Para sermos quem somos temos que enterrar quem fomos. Ou então, entramos na mais profunda das inquietações e das inseguranças - a de não se saber quem é. Donde venho? Não sei. Pra onde vou? Não sei. mas sei quem sou e onde estou.

E quando te der a nostalgia, olha para o menino ao lado, o que tem um olhar do século passado, não especialmente brilhante (mas brilhante, quand même), com ou sem a praia do Baleal em fundo...

Abraços

miguel disse...

Manel:
Mário:

Aquela do assédio é um exagero. Aliás todo o texto o é. Entendam-no como uma metáfora do avanço do tempo. Nada mais. Masmo a nostalgia está controlada. E estranhamente intersso-me mais agora com o futuro dos outros, de todos nós.

ana v. disse...

"macho imberbe mas culto , apetecível e ainda por cima douto"????
Ohhhhh, Miguel! Que pena eu ter falhado essa fase da tua vida...

miguel disse...

Ana: isto é uma metáfora. E quanto à minha beleza sou irónico, claro :) Adoro figuras de estilo!

ana v. disse...

Miguel: eu percebi, claro. E, tal como tu, estava a brincar! Também gosto de figuras de estilo, e de muito estilo nas figuras!
beijo