segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Luiz Pacheco (1925-2007)


Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor.”
“Comunidade”, Contraponto, 1964 -transcrito daqui

Não lhe conheço a obra, li-lhe ( e esqueci-os) textos dispersos e, claro, li agora - e vou lendo o que chegar - tudo aquilo que se escreveu a respeito da sua morte. Lembro-me dele a deambular por Campo de Ourique, há muitos anos, com a barba por fazer, uns óculos muito graduados, olhos esbugalhados e lembro-me dele no café Raiano - que era, então, o meu poiso e local das minhas tertúlias - com ar de quem já tinha bebido uns valentes copos de vinho e também com um ar de pessoa pouco asseada , a perguntar aos empregados onde é que era a casa de banho.E lembro-me de o ver, várias vezes, a sair da casa de banho, ainda a fechar a braguilha ( as calças talvez salpicadas de urina), de expressão aérea e de andar cambaleante. Lembro-me também da complacência dos empregados perante o quadro: " sabe? Ele é um escritor conhecido..."

Ele foi o protagonista de muitas das minhas cogitações ao longo destes anos: mas o homem, naqueles preparos, nunca mais morre? Hei-de comprar um livro dele. A sua iconoclastia fascina-me... identifico-me um pouco ( ou até muito ) com essa atitude. Onde é que ele andará hoje, agora?

É isso: admirei-lhe o desapego, a recusa de tudo e de nada, a dignidade própria rastejante e também pasmou-me a sua longevidade. Depois do belo texto que acima transcrevi , fico muito, muito curioso de o ler mais vezes e de o tornar conhecido de outras pessoas.


Bem, e se todos fossemos como ele, se os nossos ascendentes lhe tivessem seguido o exemplo, nem o Luiz saberia o que quer que fosse de alguma coisa porque nem escrita talvez houvesse. E o mundo talvez não fosse feito de tragédia e hipocrisia mas sim de muita poesia e de um regalo constante.

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