sexta-feira, 10 de outubro de 2008

poesia (2)


Primeiro - Navegar pela internet fazendo tantas mudanças de rumo quantas o número da sua mais ínfima unidade de área é, na escala da vida de uma pessoa, empresa tão grandiosa como sair do sistema solar, aportar ao primeiro planeta do primeiro sistema planetário a seguir ao nosso - se essa ideia de sucessão existisse no universo – e voltar a tempo de apanhar o nosso próprio tempo. O mesmo diria eu da blogosfera. E mesmo da blogosfera seleccionada com base nos afectos e cumplicidades tempo teria eu de explorá-la apenas e se porventura lançasse nas mãos dos outros a minha própria sobrevivência e daqueles que fiz chegar ao mundo e à vida.
Mas fazer dissecções sobre dissecações da blogosfera seleccionada é quase um imperativo; é dar-lhe a utilidade que se dá ao cadáver a que se faz a mesma coisa: é dar-lhes a vida que merecem.

Segundo: Queixei-me uma vez ao Francisco José Viegas , por e-mail, da indecifribilidade de certa e cada vez mais farta da poesia que se faz. Descansou-me o homem, reafirmando o ajuste do vocábulo longo, sublinhando a sua relação com um outro, igualmente longo - imprescindibilidade. A razão da minha queixa é mais profunda: lastimo a incapacidade que tenho de decifrar aquilo que por vezes se apresenta belo, muito belo. Mas é certo que nada escapa ao poeta nem o respirar de um folha há muito morta que o vento levou ninguém sabe onde. Eis talvez outra resposta.

Terceiro – Posto tudo isto, transcrevo íntima memória de Barcelona que fui buscar a um arquivo, talvez esquecido mas recente ( Abril 2008) do blogue deste talentosíssimo poeta que, aliás, assina ele próprio o poema.

San Vicenç de Sarrià

Parecem os mesmos do ano passado,
no mesmo sítio (um ano!) e à mesma hora.
Ela no mesmo tom, que vai embora,
E ele geme e está mais gordo (ou mais delgado?).

Que tenho eu com isto? E porque não
escandir antes o ocre das fachadas,
que dessas há certeza, e as ensaimadas
cheias de açúcar (sacudo-o para o chão)?

Teimosas pálpebras, fiquem caladas!
Se ele chora e ela também, eu canto um fado
Que o santo aplaudirá do pedestal

Pois da montanha ao mar quem desarvora
Há-de voltar, amando, no Mistral
Só para me baralhar a narração.


Barcelona, Fevereiro 2001/Lisboa, Abril 2007

4 comentários:

Mário disse...

Miguel
Tocaste numa das minhas cordas mais sensíveis - a poesia.
Não é por acaso que ultrapassei os trezentos livros de poesia na minha estante. Aliás, há minutos, dei entrada no meu blogue a duas versões do mesmo poema - de Jacques Prévert e Nat King Cole.

Há dias, num jantar em Famalicão, onde me desloquei propositadamente para conhecer o meu velho amigo Jorge Reis-Sá (de quem sou íntimo desde há cinco anos, apesar de nunca o ter visto pessoalmente até esse dia!), às tantas ele disse-me que tinha começado a escrever poesia porque era preguiçoso e disléxico, e tinha entendido que, com poucas palavras, conseguia expressar ideias e sentimentos de uma forma económica e simples, com menos hipóteses de errar. Ainda por cima de forma esteticamente muito bonita - acrescentaria eu, embora creia que, com o Jorge, não foi exactamente isso que aconteceu, dada a sua craveira superior.

A poesia é uma arte, dentro da Literatura. Às vezes hermética ou incompreensível, veja-se Maria Teresa Horta ou Salette Tavares, ou tantos outros poetas. Pessoalmente, talvez pela enorme influência que António Gedeão teve em mim (como professor, sobretudo), bem como Eugénio de Andrade, Manuel Alegre e Fernando Pessoa (nos seus diversos heterónimos), prefiro a rima, a frase que "faz sentido", a melodia inerente ao poema.

Mas acredito que, para os autores, cada palavra tenha o seu significado profundo, mesmo que enigmático ou críptico para os leitores.

Falamos muito - eu sou um exemplo disso, basta ver a dimensão deste comentário -, mas conseguir dizer muito em poucas palavras é um talento sublime.
Desculpa não o ter conseguido aqui, mas como escreveu Pessoa, "o poeta é um fingidor".

Abraços

miguel disse...

Mário: eu até prefiro prosa nas suas diversas dimensões. Comparo alguns poemas a bombons : uma coisa muito finita mas que deixa uma imensa sensação de bem estar.

Mário disse...

Miguel: a comparação é, já de si, um poema.
Aliás, permite-me aconselhar a leitura dos dois poemas de Brel sobre "Les bonbons".
Mas acho que a poesia dura mais do que o espaço da sua leitura e saboreio. Pode ser um extraordinário exercício de análise e de síntese. E de aproximar a expressão e a comunicação à arte perfeita: a música. As rimas são acordes, as mudanças de verso são pausas, os acentos vão do "piano" ao "fortíssimo", os poemas variam entre o scherzo, o allegro, o adagio e tantas outras formas de composição.
É por isso que acho que a poesia está muito próxima da perfeição. Embora goste muito de escrever prosa.
Se tudo correr bem, dentro de um ano espero ter publicado mais um romance, dois livros de poesia e uma peça de teatro. É uma necessidade, uma dependência, o que queiras chamar...

Huckleberry Friend disse...

Caro Miguel:

Razões que conheces têm-me impedido de andar muito pela blogosfera. Mas não quero deixar de agradecer esta simpática citação. Que saudades de Sarrià... e tuas, pois clado. Um abraço!