sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

na barbearia...


O estabelecimento onde costumo aparar a barba leva 7€ pelo serviço. Disseram-me que é muito caro. Eu só tenho que acreditar porque, já velho, ainda associo roubo, unicamente, com o conceito clássico do próprio acto – violento, clandestino, ameaçador. Na barbearia tudo é diferente: o dono e os empregados são cordiais e agradecem, penhoradamente, a generosa gorjeta com que enfeito o acto do pagamento.
O enorme espelho corrido, que reflecte a minha imagem enquanto me cortam o cabelo ou, enfim, me aparam a barba por um preço manifestamente exagerado, não mente: os barbeiros devem ser profissionais de larga experiência porque são a imagem – intuitiva – do típico português de meia-idade, avançada, com cabelos de cor branca, pouco pujantes e impecavelmente penteados , uma barriga proeminente , destonificada e sábia expressão no rosto que torna qualquer um devedor do respeito natural que se deve aos anciãos .

Postas que são estas e outras constatações divirgo, então, o olhar para a minha própria pessoa. O espelho não mente: procuro aquilo que me diferencia dos barbeiros – a erudição jovial e bem humorada da expressão, as madeixas quase louras, a pele salvaguardada da passagem do tempo. Debalde. O espelho não mente: somos todos, os que ali estamos , a reprodução da mesma imagem da decadência física e da maturidade quase acabada. O espelho não mente porque, na sua frieza de água clara e transparente, não escamoteia a comparação; fá-la com um notável sentido do real. Espelho sábio!

É na barbearia que me dou conta que estou velho e então dá para compreender a condescendência com que me vão tratando e a minha própria condescendência , aquela que vai tomando conta de mim.

1 comentário:

Mário disse...

Meu Caro Miguel
Quando o meu pescoço resolveu entrar em greve, estilo "professores", e um dia sentique a minha mão direita estava incapaz de segurar uma caneta, além das dores insuportáveis, apanhei um grande susto, como deves calcular.
Foi a correr aos meus colegas da neurocirurgia, que me disseram: "eh pa´, é fácil: abrimos-te as vértberas, ressecamos os osteofitos que tens dentro delas e ficas óptimo". Cada palavra pesou na minha alma, e esta de abrir vértebras, sobretudo tendo o exemplo de um irmão a quem "abriram vértebras" e estragaram tudo, deixou-me mal.

Fiquei em casa quinze dias, e decidi deixar crescer a barba - que tu conheceste. Ia apará-la ao barbeiro, mas era caro como tudo - semanalmente! Um dia, em Lagos, fui a um cabeleireiro, onde uma jovem ucraniana me aparou a barba, fazendo-me pensar que me tratava de um autêntico Brad Pitt.
Quando lhe perguntei quanto era, respondeu - ela e a ptroa - "não sabemos, acho que naada, porque é a primeira pessoa que vem aqui a pedir isto". Foi generoso na gorjeta.

Depois arranjei uma máquina e divertia-me a cortar a barba - e passei mesmo a gostar de tal actividade. No casamento da minha filha, pus-lhe a questão, com dois meses de avanço, dado que vinha o Verão e iria ficar em technicolor se a cortasse depois. "com barba, Pai". Mais valia que dissesse "Avô", que era o que eu parecia.

A barba manteve-se durante o Verão e cortei-a no dia dos meus anos, já em Outono profundo. Mas sempre em casa.

Mas devo dizer que as conversas no barbeiro são algo de sensacional - frequento o mesmo há 33 anos. O Pedro cortou lá o cabelo pela primeira vez. Agora são os mais miúdos - amanhã, eu, o Eduardo e o Tomás temos "consulta" às 17h45m.

O espelho reflecte o que somos - cada vez melhores, cada bez mais perfeitos, cada vez mais ansiosos, cada vez mais saudosos e, principalmente, a ver que cada minuto que passa é um minuto que passou.

Mas, como sabes, os verdadeiros relógios de barbearias têm os ponteiros e o movimento colocados em ordem inversa, "anti-horária", para que no espelho tudo apareça normal.

A vida é assim. Descansa: quando morrermos, os nossos filhos, amigos, alunos, todos aqueles em quem "tocámos", hão-de nos levar à Eternidade. Carregam um bocadinho de nós. No final, não sei se entre querubins e serafins, ou outra coisa qualquer, tudo se comporá.

O espelho não mente - o meu diz-me: és um tipo que conheço e que me surpreende todos os dias. És um tipo que sabe cada vez mais o que é prioritário e o que é acessório. É um tipo que pode ser chato e nhurras, mas também tem muito de bom. Que mais posso querer de um espelho? Não tenciono fazer concorrência à Branca de Neve...
Abraços
Mário