quinta-feira, 19 de junho de 2008

a morte saiu à rua...


Morreu um homem no meio da rua. Quis a Paula que eu me cruzasse com a morte do homem; quer dizer, sugeriu que eu aparasse a barba às 9H00 da manhã daquele dia porquanto já levava mais de outros quinze sem o fazer e o meu rosto evoluía já , do ponto de vista da expressão, do ar duro do Chuck Norris para a bonomia do Capitão Igloo.

Está bem de ver que o homem morreu bem perto da barbearia. Percebi-lhe, de imediato, o fim. E percebi-lhe também de imediato a causa do fim: um AVC dito hemorrágico; tinha o rosto cor de vinho. A multidão guardava já um silêncio inusual para um episódio de meio da rua, manhã cedo: o fascínio da morte instalara-se naquela gente.

Decidi fazer aquilo que constituía o motivo da minha presença ali. Entrei na barbearia , depois de me informarem que o INEM estava a caminho. Garanto que esqueci por minutos o episódio raro daquela morte em directo. Relembrei-o quando ouvi a sirene da ambulância. Imaginei então a cena. Confirmei o que imaginava , pouco depois. Os socorristas tinham arrastado o homem para o local exacto por onde eu teria de passar para poder sair da barbearia e procediam a manobras de reanimação, inúteis, como eles e nós bem o sabíamos. Saltei por cima do aparato e fixei então , primeiro, o rosto do defunto: quanta serenidade no rosto , quanta poesia naquele olhar fixo para lá do infinito. Um meio sorriso, belíssimo, completava o quadro. Fiz, depois, escorrer o olhar pelo resto do corpo do homem. E em resposta à massagem cardíaca que lhe era aplicada , o enorme volume do abdómen ganhava uma animação rítmica como se fosse uma gelatina, grande e alva.

Não me detive mais com o olhar e regressei pelo caminho de onde tinha vindo Fui o único. a multidão permanecia, certamente cogitante, claramente fascinada, respeitosamente silenciosa, como personagens de um grande exército como aquele que o chineses construíram e cujas figuras são feitas de terracota.

Mas a coreografia do abdómen volumoso do homem morto induziu em mim, desde esse momento e por largas horas, a reflexão abrangente sobre estilos de vida, sobre auto-destruição, sobre cozinha tradicional e aquela mais requintada, sobre sedentarismo e também lembrei os teóricos do vinho e da cerveja e a importância destes produtos na economia nacional e por fim a temática, ainda mais abrangente e muito filosófica sobre o morrer com saúde, tarde, do que sem ela. , cedo. Lembrei que corro que me farto e lembrei-me de fazer o elogio da magreza saudável que é a minha. À noite, com os filhos, fiz uma deriva científica sobre causas e efeitos dos AVC, acabando por fazer a pedagogia da alimentação racional e da actividade física regular.

E ia concluíndo pela evitabilidade da morte. Não cheguei a tanto.

5 comentários:

Mário disse...

"A morte saiu à rua num dia assim Naquele lugar sem nome para qualquer fim Uma gota rubra sobre a calçada cai E um rio de sangue de um peito aberto sai..."

A morte está em qualquer lado, à espera de mais um passageiro para a barca de Caronte. É por isso que convém ter sempre uma moeda no bolso - e se um mendigo não a tem, dêmos-lha.

A morte surge assim, de repente. Num corredor de um hospital, numa sala de um serviço de urgência, na cama de uma enfermaria. Ou em casa. Ou na rua. Ou quando o baterista dos ABBA escorrega e cai contra uma janela e o vidro quebrado corta-lhe a jugular, sangrando-o até à morte. Assim. Sofrida ou súbita. Como Fehér ou como o Papa. De "doença prolongada" (o único caso em que se vê pudor nos jornais!!!) ou num acidente - vascular ou biomecânico.

Todos nos juntaremos a Nix e a Erebo, na secreta esperança de alcançar os Campos Elísios.

Já vi morrer, já tentei salvar, ja tive que desligar a vida - decisão solitária, numa qualquer madrugada de um qualquer dia de um qualquer ano. Sem familiares para decidir. Só.

Que possa esperara eternidade junto ao Lete, por qualquer corpo, que me leve de volta às pessoas que amo.

Mário disse...

Os versos iniciais são do Zeca, claro, sobre o assassinato do pintor Dias Coelho, na antiga Rua da Creche, em Alcântara!

miguel disse...

Mário: lindíssimo texto que confirma uma opinião minha, muito, muito, pessoal, como todas as opiniões pessoais:é que quando , digamos assim, fazes " incursões de carácter literário" por memórias ou factos da tua fascinante e belíssima profissão , é precisamente nesses momentos ( que me parecem escritos com a facilidade com que se escorre a manteiga bem derretida no pão)que melhor constróis pontes entre a tua vastíssima e abrangente cultura e o próprio acto de criação literária ,um pouco à semelhança do teu colega , o neuro-cirurgião lobo antunes ( nao o outro).Não esqueço a introdução incrivelmente bela que fez ao último livro do Cardoso Pires.

A questão dos livros que escreves - em que estás sempre muitíssimo bem - é outra: aí, penso, a preocupação é mais formar e informar e menos criar,no sentido de fazer arte. Estarei errado?

miguel disse...

E uma nota - a enésima - para esse GENIAL -genial sim - poeta , compositor, autor de nome José Afonso.

Sofia K. disse...

Tinha saudades destes teus textos!

beijinhos